sábado, 23 de janeiro de 2010

Brasil multilíngue

O nosso país é, visível e incontestavelmente, multilíngüe. No entanto, nas práticas de ensino da língua esta realidade ainda não é considerada. Faremos algumas breves considerações a respeito deste distanciamento e conflito entre o cenário multilíngüe brasileiro e a política lingüística monolíngue ainda instaurada.
O espaço enunciativo brasileiro é constituído pela língua portuguesa, as línguas indígenas, as línguas africanas, as línguas de imigrantes e as línguas de fronteira. Todas estas línguas compõem a língua brasileira. Esta terminologia – língua brasileira – é proposta pelos especialistas justamente para que não se confunda as categorias “língua materna”, “língua nacional” e “língua oficial” como sendo a mesma coisa.
Um fundamental ponto de partida é considerar e entender o processo histórico-político que “dá nome aos bois” e estabelece constitucionalmente que a língua portuguesa é a língua oficial e nacional do Brasil. No nosso caso, as duas categorias coincidem. Mas não necessariamente a língua oficial de um país é sua língua nacional e, menos necessariamente ainda, a língua materna de seus falantes.
Se tomarmos como exemplo este “prato cheio” que é a nossa região trinacional, podemos visualizar o funcionamento do multilinguismo e das diversidades dele decorrentes de maneira muito palpável. E são os falantes inseridos neste contexto rico e peculiar que temos em nossas salas de aula. Ou seja, temos alunos com uma linguagem resultante da interlocução entre línguas de fronteira (neste caso, o português, o espanhol e o guarani), línguas de imigrantes (sobretudo alemão e italiano, aqui no oeste) e mais a situação exclusiva e privilegiada de 72 etnias convivendo em Foz do Iguaçu.
Decorre desta efervescente heterogeneidade lingüística (também cultural, religiosa, etc) que nossos alunos apresentam em sua fala e escrita elementos fonológicos, lexicais, sintáticos, semânticos e discursivos os mais diversos. Podemos ter, por exemplo, um aluno “brasiguaio”, cuja língua materna é o alemão, que tem o português como segunda língua, foi alfabetizado em espanhol numa escola do Paraguai e lá aprendeu também a falar o guarani. Tudo isto vai configurar sua fala e escrita e o professor precisa saber o que fazer diante disto. Não é possível negligenciar as especificidades apresentadas pela linguagem deste aluno e é preciso saber aproveitá-las e tratá-las adequadamente. Estas demandas lingüísticas devem ser convertidas em estratégias e soluções, ao invés de constituir um problema. Isto é sabido pelo professor que tem clareza de sua filiação teórico-metodológica e acolhe a realidade multilíngüe como subsídio gerador em suas aulas.
Embora a consideração deste multilinguismo pareça algo irrelevante e não-definidor, as conseqüências de sua negligência se materializam “ao vivo e a cores” todo dia nas nossas salas de aula e, por conseqüência, no atual estado de coisas do país. Afinal de contas, tudo acontece – ou não acontece – via palavra.

2 comentários:

Caio Martins disse...

Jeane, é artigo que assinaria em baixo sem vacilar. Porém, num país onde há imenso orgulho em gaguejar meia dúzia de palavras em inglês (antes, era o francês), e ensina-se o repúdio às formalidades da língua (fator primordial de identidade), nenhuma de suas vertentes será respeitada. O discurso será nivelado pelo mais medíocre. Povo sem identidade é povo sem liberdade.

Jackson Lima disse...

Adorei o texto. Vou indicá-lo. Abraço, Jackson